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Bem vindo ao blog Cuiqueiros, um espaço exclusivamente dedicado à cuica – instrumento musical pertencente à família dos tambores de fricção – e aos seus instrumentistas, os cuiqueiros. Sua criação e manutenção são fruto da curiosidade pessoal do músico e pesquisador Paulinho Bicolor a respeito do universo “cuiquístico” em seus mais variados aspectos. A proposta é debater sobre temas de contexto histórico, técnico e musical, e também sobre as peculiaridades deste instrumento tão característico da música brasileira e do samba, em especial. Basicamente através de textos, vídeos e músicas, pretende-se contribuir para que a cuica seja cada vez mais conhecida e admirada em todo o mundo, revelando sua graça, magia, beleza e mistério.

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domingo, 31 de março de 2019

Cuiqueiros 8 - Manoel Quirino

"A fotografia que eu gostaria de ter encontrado na época da escrita do mestrado: a cuíca carioca na transição de sua forma e técnica de execução antiga (ainda como puíta) aqui apresentada por Manoel Quirino, o 'ás da cuíca' da escola de samba Lyra do Amor, de Bento Ribeiro... (Rio de Janeiro, Revista O Cruzeiro - 1935)".

As palavras acima são do historiador e etnomusicólogo Rafael Galanteautor de uma brilhante dissertação de mestrado, já comentada AQUI no blog, onde aborda a relação entre a cuíca e os tambores de fricção da África Central, como a puíta angola. 

E esta é a fotografia em questãoUma imagem que deveria ser impressa em nossos livros escolares e merecia ganhar uma versão em escultura de bronze exposta em praça pública, tamanha a sua beleza e valor histórico.

Originalmente publicada em 16 de novembro de 1935, esta foto ilustra uma reportagem da revista O Cruzeiro sobre a visita de dois bailarinos russos, Clotilde e Alexandre Sakharoff, ao terreiro da escola de samba Lyra do Amor, no bairro carioca de Bento Ribeiro, acompanhados de personalidades da alta sociedade brasileira.

Segundo a revista, os visitantes "se deliciaram ouvindo o ritmo estranho do samba de nossa terra, com suas cuícas, seus tambores monótonos, seus violões plangentes e seus cavaquinhos. Os artistas russos mostraram-se maravilhados com aquele espetáculo de arte primitiva, revelando seu invulgar interesse pelos instrumentos e pelos motivos musicais que escutaram".

Aí vemos Manoel Quirino, um completo desconhecido nos dias de hoje, assim como muitos outros cuiqueiros do passado. Apesar do seu atual anonimato, é provável que ele tenha sido um protagonista de seu tempo, pois ter seu nome citado na principal revista da época, descrevendo-o como "ás da cuíca", significa que ele devia ocupar um lugar de destaque entre os seus contemporâneos. Talvez nunca saibamos maiores detalhes de sua biografia, mas o fato é que ele certamente foi um dos primeiros cuiqueiros do samba, e devemos a pessoas como ele o prazer de, hoje, tocar nossas "choronas".

Além da enorme satisfação que nos dá simplesmente saber da sua existência, esta bela imagem de Manoel Quirino traz também a oportunidade de observar algumas características que a cuíca tinha no passado. Como o próprio Rafael Galante observa, vemos aí um instrumento "na transição de sua forma e técnica de execução antiga". Essa antiga técnica de execução já foi tema de um post AQUI no blog. E quanto às suas antigas características físicas, vale comparar esta cuíca de Manoel Quirino com o seguinte relato de Mestre Marçal a respeito das cuícas que ele via em sua infância:

"Naquela época a cuíca ainda era encourada com tachinhas. Esticava a pele e ia colocando tachinhas. E a vareta não era como a de hoje não. Furava-se a pele com alfinete quente, pregava-se uma arruela de couro por cima e por baixo da pele e amarrava o bambu com arame. Aquilo tinha pouca duração porque o próprio arame ia cortando a pele. Ou então o arame partia. Depois apareceram as cuícas como essas de hoje, que só arrebentam mesmo quando a pele arrebenta" (Depoimento prestado ao jornalista Sérgio Cabral em 1979).

Vemos nitidamente a arruela de couro mencionada por Marçal no centro da pele da cuíca de Manoel Quirino. Já o bambu preso com arame não dá pra enxergar, assim como as tachinhas, mas podemos deduzir que estas estejam ali, fixando o couro em toda a circunferência na barrica de madeira. Desta forma, o método de afinação consistia em aproximar o instrumento à uma fogueira para esticar o couro sob efeito do calor. Depois, como disse Mestre Marçal, apareceram as cuícas como essas de hoje, não mais com tachinhas, arame e arruelas. Mas quando exatamente teria ocorrido essa transição na estrutura do instrumento e também em sua técnica de execução?

Não é simples responder esta pergunta. Entretanto, comparando esta imagem de Manoel Quirino, registrada em 1935, como outra fotografia também já publicada aqui no blog, de Marcelino de Oliveira,  produzida em 1937, vemos que numa diferença de apenas dois anos, o atual mecanismo de afinação e a atual técnica de execução já estavam em uso. Mas além disso tudo, tem ainda o que é de fato importante: o sorriso no rosto de Manoel Quirino demonstra que tocar cuíca traz felicidade há muito mais tempo do que um famoso meme fez, recentemente, todo mundo acreditar.
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