Ensaios de rua, churrasco de confraternização marcado para a tarde de sábado.
Passou em Cordovil umas e outras vezes e debateu com perícia como seria a cuíca que iria percorrer a Avenida aconchegada. Pediu couro grosso, jeitão de curtido, mas que não esmaecesse os agudos. O corpo poderia ser um cafezinho a mais. Pra ficar maior que a do Nirval.
A assiduidade e os anos de dedicação à Escola – oito mais cinco de barracão – cacifaram Jorge para um lugar melhor no naipe. O pau cantando pelo miolo [encurtando a história, para que se aparecesse na tevê], e ele e Nirval se esbofeteando calados pelo flanco esquerdo, a saber: mais perto do público, o cuiqueiro gira para a torcida, empina o nariz da cuíca e o dele, desenrola uma lista infinita de ganidos, gemidos ou gargalhadas.
Mas que Nirval era putavelha, bilheteiro que fora na Copa de 50. Diziam que capaz de prender vareta de cuíca no couro seco. Provável que não, mas ser alguém a quem se atribui tanto, vai saber. Era o que todos pensavam.
Além do corpo comprido, pediu vareta-de-madeira-tamanho-médio, dez tarraxas das mais finas, afinador em formato de L. Escolheu no Soares o gorgorão cor-sim-cor-não da Escola. De quebra, um talabarte de couro escuro, bonito mesmo.
Era de dar gosto no ensaio ele falando alto no nheco-nheco da cuíca. Foi até Nirval que explicou o nome, de um tal bicho difídio. Ifígio?
- Didelfídeo, corrigiu a sobrinha bióloga.
Primo do gambá. Daí veio, sabe-se lá, o nome da cuíca. Melhor nem saber, respondeu Jorge, e que já bastava o cheiro suado daquele gorgorão.
Ensaios de quadra, de rua, técnico e o convite pra gravar mais Nirval o samba campeão. Uma rapaziada das antigas, a molecada castigando nos repiques e uma quantidade de tamborins que só coelho faz filho igual.
Nezinho, Jurandir, Juarez Medrado, Altamiro, Petrônio e o João Toca da Onça. Batuque completo em mais uma aporrinhação com a mulher, que não gostou da esticada depois da gravação.
O chapéu, diziam, ia ser espichado e não daria pra baixar a cabeça nem pra coçar o queixo. Mas que diabo alguém ia inventar de coçar o queixo em plena Avenida, tranquilizou seu Júlio, segundo na Coordenação-Geral de Harmonia.
83 de cintura, 100 de quadril. De peito, quase 90.
Riu pra costureira: é o cigarro.
Confiante com o lugar na ponta canhota, preocupava o chapéu. Movimento pra cima do rosto, aquele que, cheirando o céu, faria em agudos, gemidos ou gargalhadas. Fosse o que fosse.
Naquele dia ia saindo de casa animado como se tivesse, enfim, tido paz com a esposa ou a filha casado certo. Vestido já no colete dourado - o emblema garrido em penas verdes - ajeitou a cuíca com o adesivo da Escola que, ai, ai, ai, roubava o som do final das frases. Deixe de frescura Jorge, isso tá gritando mais que porco, e Eleonora deu um beijo no instrumento assim como que aliviada porque amanhã não se falaria mais em ensaios.
Ele deu com o bombril na vareta de madeira para o gorgorão poder deslizar como o quê! Lixou uma unha mais teimosa e respirou fundo antes de continuar afinando o couro. Eleonora olhava já no carinho aquela chave em L volteando tarraxas estreitas. Ensaios ou não, era mulher de Jota Maravilha, e ele, marido de Eleonora Said, que ia ficar grudada na tevê sem saber que seu Jó estaria, depois de anos, no canto esquerdo que as câmeras ignoravam.
A concentração era aquilo: algum chá de macaco, cigarros à vontade. Nirval um pouco injuriado por ter perdido o lugar na primeira fila. Vez em quando, uma repuxada na cuíca pra ela já ir entendendo.
Fogos, grito de guerra.
No fundo, Nirval reconhecia o empenho. Jorge não tinha faltado ensaio algum. Uma gripezinha esfarrapada sequer.
Hino da Escola a plenos pulmões, a formiguice de diretores encamisados. Crachás e mais crachás, um repórter boa pinta que parecia mais alto na tevê.
Bandeirinhas agitando no Setor Um. Fogos.
O puxador: a hora é essa!
De repique, Nezinho respondeu na habilidade e depois, a frase pontuada dos tamborins. Daí conta 1-2-3-4, entram chocalhos, ganzás e xequerês – um negocinho depois, a cuicada solta o verbo.
A mais alta, a de Nirval. A mais bonita, a de Jó, que nem mais se cabia em gaiatices, o Setor Um inteiro brincando com ele.
...
Não foi puxão mais forte, não foi pegada sem jeito. São anos de cuíca, rapaz, conheço que só. Não lembro de esbarrão de quem fosse. O som veio sozinho que até pensei no repique largando o dedo e fechei o olho contente da bossa improvisada. Foi ainda no olho espremido que chegou a notícia. Primeiro o som respondeu desbeiçado; refazendo o desenho dos dedos esquerdos no couro, senti na ranhura aquela tristeza tátil. Minha esposa tá bem, minha filha, se não casou como eu pensava, já é quase feliz. Não me faltam saúde e um neto dengoso. O lugarzinho na canhota disputei justo munheca a munheca com um malandro tinhoso que dá nó em couro seco. [Mas o olho arregalava olhando a pele rasgada, ferida pra sempre].
...
– Vamo cantá, vamo cantá, minha bateria.
Obedeceu com frouxas miniaturas de fonemas e seguiu marchando mole. Mas era já preto e branco o som irritantemente alegre daquela Avenida. O olho - que parece - não se abria mais com a verdade inventada de domingo-carnaval.
Não podia abortar a tristeza ou parir em choro menino: aquela criança morta e cheia de tarraxas seguia em seu colo. E ele cantando bordões do samba do ano, meu deus. Antes uma chuva (ou sarjeta escurecida). Ladeira esburacada de cemitério, qual o quê!
Olhou para o Nirval, que já não interessava em nada. Era um velho, mais que todos, e não tinha que ficar por aí se esmerando em buzinar instrumento com nome de gambá, porra. O Setor Um emaranhava gentes satisfeitas em sacudir bandeiras de plástico duvidoso. E seu talabarte fedia a couro de forma excessivamente afetada.
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Paulinho, fico feliz de vc também ter postado este texto lindo da Manuela ! Já o havia postado também no Facebook, na "Cuícas da Ritmo Feroz" e também me emocionei como ela conseguiu captar toda magia e, às vezes sofrimento, de quem se propõe a tocar cuíca, bem ou mau, profissionalmente ou por simples lazer ! abraços para os dois.
ResponderExcluirIsmael Leite
Maravilha Ismael!! Foi justamente no perfil da "Cuícas da Ritmos Feroz" que eu conheci esse texto da Manuela. Emocionante né meu amigo? Grande abraço!
ExcluirMuito interessante este texto, e pior que outro dia estive pensando nisso, o que fazer se o gambito quebrar na hora de desfilar, já pensei em levar sempre uma pele pronta, caso ocorra algum imprevisto, troque no meio da avenida, não só na avenida como nas rodas de samba que toco, graças a deus a única vez que meu gambito quebrou, já estava no final da roda de samba e mesmo assim dava para tocar, só ficou mais curto, acredito que este seja o pior pesadelo para um cuiqueiro, o gambito quebrar na hora do show, pois que toca cuica sempre dá show, desculpe os outros instrumentos, todos são importantes, mas a cuica é algo especial, não há como explicar, fico na minha casa escutando um samba sozinho na sala e tocando a minha cuica por 1, 2 e até 3 horas, sem levantar nem para ir ao banheiro.
ResponderExcluirPaulinho obrigado por você está divulgando esta arte, estamos aí para qualquer parada, valeu pedra 90 !!!!
Junior - Estácio - Rj
É pessoal infelizmente eu presenciei isto com um amigo meu ele andou mais ou menos uns 10 metros e o gambito quebrou ele praticamente fingiu esta tocando o desfile inteiro mas faz parte da vida e a tristeza nesta hora não tem nem explicação forte abraço a todos
ResponderExcluirPaulinho, que texto lindo!
ResponderExcluirPura poesia1 Descreve bem tudo que envolve tocar cuíca! tudo para o bem e para o mal também!
Parabéns Manuela Oiticica!
Captou todo o sentimento!
parabéns pelo texto, Paulinho. Já aconteceu comigo, junto com os intérprete (puxadores), cavaco, violão, etc., minha cuica chorava, começou a chover; eis que o gambito soltou da pele, já úmida. Enquanto o mestre , indicava pra que eu aumentasse o som da cuica, eu continuava "fingido" que tocava, dava aquelas puxadas, no vazio. Uma tristeza !... Abraço, Paulinho.
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