Carlinhos da Cuica, um verdadeiro ícone do nosso instrumento, concedeu recentemente uma
entrevista ao jornalista
Mauro Ventura, que gentilmente autorizou sua publicação aqui no blog. Obrigado Mauro, o Carlinhos merece!
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Carlinhos da Cuíca - O ritmista que desfilou em 37 escolas num só carnaval
e abandonou a Avenida por problemas de vista planeja voltar à Sapucaí |
RIO — Ao ouvir o
pedido de entrevista, Carlinhos da Cuíca diz: “Até que enfim vocês se lembraram
de mim.” Tinha época em que bastava ele pisar na Marquês de Sapucaí para ser
cercado pela imprensa, interessada em registrar um dos cuiqueiros mais famosos
da história do carnaval carioca, com seu sorriso contagiante, seu talento como
ritmista, suas aparições ao lado de nomes como Luma de Oliveira e Luiza Brunet
e sua disposição em desfilar. Salgueirense, um dos fundadores da Tradição, ele
abandonou a Avenida em 2002, por problemas na vista. Mas não perde um carnaval
pela TV.
Fundador da Academia
das Cuícas, dá curso num espaço no Pagode da Tia Doca, em Madureira, onde toca
aos domingos, há 35 anos. As aulas individuais, inclusive para alunos
estrangeiros, são em sua casa (telefones 2475-8387 e 9656-4931), num
apartamento de quarto e sala num conjunto habitacional em Irajá. “Em todas as
baterias tem aluno meu”, diz ele, de 56 anos, que em 1989 participou do filme
“Prisioneiro do Rio”, de Lech Majewski, sobre Ronald Biggs, um dos
protagonistas do assalto ao trem pagador inglês, que se radicou na cidade. No
filme, Biggs era interpretado por Paul Freeman. “Dei aula de cuíca para ele. E
para o filho do Biggs, Mike, da Turma do Balão Mágico, também.
Nascido em Salvador,
veio para o Rio aos 12 anos, tentar ser músico. “O Rio é a capital do samba.
Salvador é a terra do axé.” Foi trabalhar como porteiro num prédio na Tijuca,
onde ficou 17 anos. “Era o jeito de ter onde morar.” Fez curso de pintor de
parede no Senac. “Sou aposentado como pintor. No samba, hoje você ganha, amanhã,
não. A música é muito ingrata.” Pintou muito apartamento e loja. “Na Tia Doca,
me enturmei com os sambistas”, diz ele, que já tocou com Alcione, João
Nogueira, Agepê, Jovelina Pérola Negra, Beth Carvalho, Simone, Dudu Nobre,
Sargentelli.
REVISTA O GLOBO: Como a cuíca surgiu na
sua vida?
CARLINHOS DA CUICA: Aprendi aos 10 anos, treinando sozinho,
com uma cuíca que meu pai me deu. Em Salvador, eu via o carnaval do Rio na TV,
ouvia no rádio e me apaixonei pelo som, pelo ronco da cuíca. Toco todos os
instrumentos de percussão, mas gosto mesmo é da cuíca. Tenho mais de 20. Ela é
que dá um suingue e um molho à bateria.
Por que você criou a Academia das
Cuícas?
No fim dos anos 1990,
a cuíca entrou em extinção. A maioria dos cuiqueiros começou a morrer. Aí
fundei a academia, na minha casa, em 1999, para não deixar a tradição morrer.
Falei na ocasião à imprensa: “Enquanto existir Carlinhos da Cuíca a cuíca não
vai morrer.” Quem me deu esse apelido (seu nome é Carlos Gonçalves da Silva)
foi Mestre Marçal. Eu gravava sempre com ele. Hoje a situação da cuíca
melhorou, estão surgindo muitos jovens, inclusive mulheres, como Renata
Coroado, que foi minha primeira aluna. Tem a Marli, o Zé Mauro, o Carlos
Pinajé, o Janderson. Todos foram meus alunos.
No carnaval de 1989, você desfilou em
37 escolas. Como foi?
Eu quis bater meu
recorde anterior, de 35. Nesse ano, desfilei em 37 escolas nos quatro dias de
carnaval, sábado, domingo, segunda e terça, nos três grupos principais (à época
1 A, 1 B e 2 A). E em mais duas no Desfile das Campeãs. Cheguei a alugar por
uma semana dois quartos numa hospedaria perto do Sambódromo. Um só não dava
para tanta fantasia. Eu quase não dormia, só cochilava. Chegava ao fim de um
desfile, saía, voltava por dentro dos camarotes com uma credencial arrumada por
um amigo, trocava a fantasia ali mesmo e começava de novo. Se morresse ali,
morreria feliz. Eu vinha me preparando três meses antes. Fiz check up, me
alimentei bem, caminhava bastante. Andava da Tijuca a Copacabana. Uma apresentadora
comentou: “Olha o Carlinhos da Cuíca aí de novo, sai em tudo que é escola, se
passar um bloquinho ele vai atrás.” Fiquei conhecido como o maratonista da
Avenida.
Você parou de desfilar por causa da
vista. O que aconteceu?
Foi em 2001. Fui
dormir bem e acordei sem enxergar. Levei um susto. Um amigo me levou ao Souza
Aguiar. Fizeram exames e descobriram que eu tinha diabetes. Não sabia, foi uma
surpresa. Perdi a visão do olho direito e fiquei só com 10% do esquerdo. Dali,
me transferiram para o Pedro Ernesto. Mas lá você passa na mão de muito
acadêmico, não é atendido, dizem “volta amanhã”, o hospital entra em greve. A
sorte é que uma amiga, Magda, trabalha no Centro Oftalmológico de Ipanema, do
doutor Juan, que me trata de graça. Hoje tenho 80% da visão no olho esquerdo.
Voltei a ler e a ver TV, saio sozinho, ando uma hora e meia por dia. Não
entrego os pontos. Senão, você já era.
Não sente saudades da Avenida?
Desfilei pela
primeira vez em 1972, na Unidos da Tijuca. E me despedi do Sambódromo em 2002,
saindo em cinco escolas. Mas recebi convite de São Paulo e desfilei em três
escolas paulistanas, em 2003, 2004 e 2005. Eu me sinto meio triste porque as
escolas se esquecem dos ritmistas que trouxeram alegria. Não convidam você para
sair. Mas ainda vou fazer uma surpresa e voltar para a Sapucaí. Poderei vir no
chão ou em cima de um carro alegórico. E esse dia não está muito longe.
Por Mauro Ventura - mventura@oglobo.com.br
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