Intro

Bem vindo ao blog Cuiqueiros, um espaço exclusivamente dedicado à cuica – instrumento musical pertencente à família dos tambores de fricção – e aos seus instrumentistas, os cuiqueiros. Sua criação e manutenção são fruto da curiosidade pessoal do músico e pesquisador Paulinho Bicolor a respeito do universo “cuiquístico” em seus mais variados aspectos. A proposta é debater sobre temas de contexto histórico, técnico e musical, e também sobre as peculiaridades deste instrumento tão característico da música brasileira e do samba, em especial. Basicamente através de textos, vídeos e músicas, pretende-se contribuir para que a cuica seja cada vez mais conhecida e admirada em todo o mundo, revelando sua graça, magia, beleza e mistério.

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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Duas Cocas Zero e a conta com Carlinhos da Cuíca [por Mauro Ventura]

Carlinhos da Cuica, um verdadeiro ícone do nosso instrumento, concedeu recentemente uma entrevista ao jornalista Mauro Ventura, que gentilmente autorizou sua publicação aqui no blog. Obrigado Mauro, o Carlinhos merece!

Carlinhos da Cuíca - O ritmista que desfilou em 37 escolas num só carnaval
e abandonou a Avenida por problemas de vista planeja voltar à Sapucaí

RIO — Ao ouvir o pedido de entrevista, Carlinhos da Cuíca diz: “Até que enfim vocês se lembraram de mim.” Tinha época em que bastava ele pisar na Marquês de Sapucaí para ser cercado pela imprensa, interessada em registrar um dos cuiqueiros mais famosos da história do carnaval carioca, com seu sorriso contagiante, seu talento como ritmista, suas aparições ao lado de nomes como Luma de Oliveira e Luiza Brunet e sua disposição em desfilar. Salgueirense, um dos fundadores da Tradição, ele abandonou a Avenida em 2002, por problemas na vista. Mas não perde um carnaval pela TV.

Fundador da Academia das Cuícas, dá curso num espaço no Pagode da Tia Doca, em Madureira, onde toca aos domingos, há 35 anos. As aulas individuais, inclusive para alunos estrangeiros, são em sua casa (telefones 2475-8387 e 9656-4931), num apartamento de quarto e sala num conjunto habitacional em Irajá. “Em todas as baterias tem aluno meu”, diz ele, de 56 anos, que em 1989 participou do filme “Prisioneiro do Rio”, de Lech Majewski, sobre Ronald Biggs, um dos protagonistas do assalto ao trem pagador inglês, que se radicou na cidade. No filme, Biggs era interpretado por Paul Freeman. “Dei aula de cuíca para ele. E para o filho do Biggs, Mike, da Turma do Balão Mágico, também. 

Nascido em Salvador, veio para o Rio aos 12 anos, tentar ser músico. “O Rio é a capital do samba. Salvador é a terra do axé.” Foi trabalhar como porteiro num prédio na Tijuca, onde ficou 17 anos. “Era o jeito de ter onde morar.” Fez curso de pintor de parede no Senac. “Sou aposentado como pintor. No samba, hoje você ganha, amanhã, não. A música é muito ingrata.” Pintou muito apartamento e loja. “Na Tia Doca, me enturmei com os sambistas”, diz ele, que já tocou com Alcione, João Nogueira, Agepê, Jovelina Pérola Negra, Beth Carvalho, Simone, Dudu Nobre, Sargentelli.

REVISTA O GLOBO: Como a cuíca surgiu na sua vida?

CARLINHOS DA CUICA: Aprendi aos 10 anos, treinando sozinho, com uma cuíca que meu pai me deu. Em Salvador, eu via o carnaval do Rio na TV, ouvia no rádio e me apaixonei pelo som, pelo ronco da cuíca. Toco todos os instrumentos de percussão, mas gosto mesmo é da cuíca. Tenho mais de 20. Ela é que dá um suingue e um molho à bateria.

Por que você criou a Academia das Cuícas?

No fim dos anos 1990, a cuíca entrou em extinção. A maioria dos cuiqueiros começou a morrer. Aí fundei a academia, na minha casa, em 1999, para não deixar a tradição morrer. Falei na ocasião à imprensa: “Enquanto existir Carlinhos da Cuíca a cuíca não vai morrer.” Quem me deu esse apelido (seu nome é Carlos Gonçalves da Silva) foi Mestre Marçal. Eu gravava sempre com ele. Hoje a situação da cuíca melhorou, estão surgindo muitos jovens, inclusive mulheres, como Renata Coroado, que foi minha primeira aluna. Tem a Marli, o Zé Mauro, o Carlos Pinajé, o Janderson. Todos foram meus alunos.

No carnaval de 1989, você desfilou em 37 escolas. Como foi?

Eu quis bater meu recorde anterior, de 35. Nesse ano, desfilei em 37 escolas nos quatro dias de carnaval, sábado, domingo, segunda e terça, nos três grupos principais (à época 1 A, 1 B e 2 A). E em mais duas no Desfile das Campeãs. Cheguei a alugar por uma semana dois quartos numa hospedaria perto do Sambódromo. Um só não dava para tanta fantasia. Eu quase não dormia, só cochilava. Chegava ao fim de um desfile, saía, voltava por dentro dos camarotes com uma credencial arrumada por um amigo, trocava a fantasia ali mesmo e começava de novo. Se morresse ali, morreria feliz. Eu vinha me preparando três meses antes. Fiz check up, me alimentei bem, caminhava bastante. Andava da Tijuca a Copacabana. Uma apresentadora comentou: “Olha o Carlinhos da Cuíca aí de novo, sai em tudo que é escola, se passar um bloquinho ele vai atrás.” Fiquei conhecido como o maratonista da Avenida.

Você parou de desfilar por causa da vista. O que aconteceu?

Foi em 2001. Fui dormir bem e acordei sem enxergar. Levei um susto. Um amigo me levou ao Souza Aguiar. Fizeram exames e descobriram que eu tinha diabetes. Não sabia, foi uma surpresa. Perdi a visão do olho direito e fiquei só com 10% do esquerdo. Dali, me transferiram para o Pedro Ernesto. Mas lá você passa na mão de muito acadêmico, não é atendido, dizem “volta amanhã”, o hospital entra em greve. A sorte é que uma amiga, Magda, trabalha no Centro Oftalmológico de Ipanema, do doutor Juan, que me trata de graça. Hoje tenho 80% da visão no olho esquerdo. Voltei a ler e a ver TV, saio sozinho, ando uma hora e meia por dia. Não entrego os pontos. Senão, você já era.

Não sente saudades da Avenida?

Desfilei pela primeira vez em 1972, na Unidos da Tijuca. E me despedi do Sambódromo em 2002, saindo em cinco escolas. Mas recebi convite de São Paulo e desfilei em três escolas paulistanas, em 2003, 2004 e 2005. Eu me sinto meio triste porque as escolas se esquecem dos ritmistas que trouxeram alegria. Não convidam você para sair. Mas ainda vou fazer uma surpresa e voltar para a Sapucaí. Poderei vir no chão ou em cima de um carro alegórico. E esse dia não está muito longe.

Por Mauro Ventura - mventura@oglobo.com.br
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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Cuiqueiros da Ribalta [por Luis Turiba]

Cuiqueiro já foi uma raça rítmica em extinção no início deste século. A rapaziada que se chegava às escolas de samba só queria saber de tocar tamborim. Mais fácil, mais leve, mais prático. Os mais velhos estavam partindo ou, como o Dr. da Cuíca e o Portela, se aposentando. Foi necessário que algumas agremiações fizessem “escolinhas” para a garotada aprender a tocar a danada da cuíca.

Agonizou mas não morreu. Cuiqueiros são sobreviventes proativos que sustentam a “cama” dessas verdadeiras orquestras percussivas, as superbaterias. Os cuiqueiros, então, tornaram-se os maiores tiradores de onda do Carnaval carioca. Desfilam sorrindo, fazendo caretas e são quase todos coroas como eu. Não é à toa que as rainhas adoram provocá-los, fazendo-os ajoelhar-se diante de seus requebros.

Também pudera: a cuíca é, provavelmente, o único instrumento do mundo tocado às escondidas. Ninguém vê, mas todos ouvem e sentem. Tocá-la até que é fácil, mas ao mesmo tempo, é muito complexo. Requer tempo, atenção, agilidade, equilíbrio, muita manha e precisão.

Aula rápida: os dedos de uma das mãos deslizam segurando um gorgurão molhado por uma vareta de bambu que fica escondida dentro do bojo do instrumento. A outra mão fica por fora, apertando o couro, com toques firmes, rápidos e suaves. A mão do gorgurão molhado dá o impulso “Y” combinado com uma pressão “X”. Cria-se sons graves e agudos. O aperto exterior com o dedo cata-piolho comanda as variações: o tal tu-tum-tu-tu. Daí começa o leva-e-trás, o fuqui-fuqui.
O corpo da cuíca visto por detrás lembra a turbina de um caça supersônico de guerra. Mas cuíca é instrumento da paz. Seus princípios aerodinâmicos são complexos. A boca larga recebe um couro dobrado num arco de madeira (usa-se também de metal). Cada cuíca recebe preparações especiais. Couros, por exemplo, tomam banho de sol para pegar melhor afinação.
Algumas baterias de escolas de samba as valorizam, como a São Clemente que, ano passado, desfilou com 34 cuícas em três fileiras. A cuicaria da escola de Botafogo chega a ter um maestro — o polêmico Stalone — que criou na prática uma espécie de partitura de acompanhamento do samba da escola. Cuíca é instrumento manhoso: apertada e afrouxada a cada tocada, tem seu ponto G. Atualmente, todas as escolas possuem seus naipes de cuícas. Até versos de amor a cuíca já recebeu. Foi no poema “Minha Cuíca”, de meu livro “Cadê?”, dedicado a Roberto Salvatore.
*texto de Luis Turiba, jornalista poeta e cuiqueiro, publicado em fevereiro de 2013 no jornal O DIA ONLINE.
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