Intro

Bem vindo ao blog Cuiqueiros, um espaço exclusivamente dedicado à cuica – instrumento musical pertencente à família dos tambores de fricção – e aos seus instrumentistas, os cuiqueiros. Sua criação e manutenção são fruto da curiosidade pessoal do músico e pesquisador Paulinho Bicolor a respeito do universo “cuiquístico” em seus mais variados aspectos. A proposta é debater sobre temas de contexto histórico, técnico e musical, e também sobre as peculiaridades deste instrumento tão característico da música brasileira e do samba, em especial. Basicamente através de textos, vídeos e músicas, pretende-se contribuir para que a cuica seja cada vez mais conhecida e admirada em todo o mundo, revelando sua graça, magia, beleza e mistério.

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quarta-feira, 25 de setembro de 2019

A cuíca nos discos de samba-enredo [Parte 1]


A história nos conta que os primeiros desfiles das escolas de samba datam do início da década de 1930, sendo a famosa Praça Onze, no Rio de Janeiro, o berço do que hoje é conhecido como "o maior espetáculo da terra". Desde aquela época, a cuíca já se destacava como um elemento importante nesse contexto. O concurso para cidadão samba de 1936, por exemplo, avaliou os candidatos com base nos critérios convívio no morro, boa conduta, saber tocar pandeiro, puxar cuíca, bater tamborim e surdo, e ter três composições próprias. Muita coisa aconteceu da Praça Onze à "espetacularização" dos desfiles e um fator importante nesse processo é a produção anual dos discos de samba-enredo, iniciada em 1968 com o LP Festival de Samba.



Gravado ao vivo nos terreiros das escolas que naquele ano disputaram o principal título do carnaval carioca, Festival de Samba é um marco na discografia brasileira. Muito poderia e deve ainda ser dito a seu respeito, mas com relação à cuíca, chama atenção a presença discreta da chorona na maioria dos sambas, inclusive na faixa acima, que destaca o som das baterias de cada escola. A dificuldade técnica imposta pelos equipamentos de gravação disponíveis na época certamente justifica a má captação do som das cuícas, mas é oportuno associar tal fato aos discos do gênero produzidos atualmente.

Os amantes da cuíca vem tendo grande frustração com os discos de samba-enredo nos últimos anos, pois o som da chorona tem sido suprimido das gravações como se ela nem existisse nas baterias. Mas, por qual razão isso está acontecendo se hoje o aparato tecnológico já é capaz de superar qualquer dificuldade de produção? Nada melhor do que ouvir uma das maiores autoridades no assunto para buscar uma resposta. Convidamos Nilsinho Neon para expor a opinião de quem tem na bagagem quase cinquenta anos de desfiles no carnaval carioca e mais de três décadas de gravações de cuíca em discos de samba-enredo. Com propriedade, seu depoimento trás uma breve análise do tema e um resumo de sua própria experiência no samba.



A origem do seu apelido, por usar luz neon buscando maior visibilidade nos desfiles, é análoga ao desejo de que a cuíca também se faça mais notada nos discos de samba-enredo. Conforme Nilsinho nos revela, a justificativa dos produtores com relação à redução do som da cuíca nos discos seria então a prioridade dada ao canto do samba, mantendo a base instrumental em planos secundários para favorecer o aprendizado da letra. Entretanto, diminuir o som da cuíca nas gravações a ponto de praticamente eliminá-la do áudio é uma decisão que descaracteriza a diversidade sonora das baterias e que compromete a experiência de quem escuta os discos na expectativa de apreciar toda a riqueza musical das escolas de samba. Se considerarmos a discografia completa dos sambas-enredo do Rio de Janeiro, bem como a discografia de São Paulo, além de outras cidades que também possuem suas produções como Santos e Porto Alegre, veremos, no entanto, que há bons exemplos de gravações onde a cuíca se faz claramente notada, em equilíbrio com os demais instrumentos, e sem interferir no canto e aprendizado do samba. Partindo dessa observação, destacaremos essas gravações em postagens futuras, torcendo para que surjam novos exemplos com a cuíca em alto e bom som nos discos dos próximos carnavais. Porque a cuíca não pode calar, como diz um bordão já famoso nas redes sociais.
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domingo, 21 de abril de 2019

Vídeo 23 - Água de Cuíca [Ernani Cal e Lucas Gralato]

Hoje é o dia dela! Ela que teve o seu legado jurado à extinção, que deixaria órfãos verso, refrão e uma legião de boas praças. Parente da onça, barrica, puíta, sarronca e tantos outros esturros largados. Ela é de fato um tanto estranha, mas estranho mesmo é quem não sabe admirar essa peça rara da história. Essa tinhosa! De choros e sorrisos, euforias e lamentos. Que faz quebrar cintura de mulata e entortar perna de bamba. Ela é o cão! Fonte de inspiração e comunhão que nos faz querer protegê-la. E hoje, novamente, é o dia dela. Um brinde à cuíca! Um brinde com Água de Cuíca! Bebam sem moderação e apreciem sem pestanejar.


Água de Cuíca

Juraram seu legado, a extinção
Quizeram órfão verso e refrão
E uma legião de boas praças
Onça, barrica, puíta, sarronca
Ferina do esturro largado
Estranha, peça rara da história
Tinhosa de choros sorrisos
De euforias e lamentos
Quebrou cintura de cabrocha
Entortou perna de bamba

Tanto fez, foi cão e inspiração
Foi motivo de comunhão
Ninguém vai te condenar
Sou a sua proteção

Bebo água de cuíca
Bebo dela todo dia
Bebo água de cuíca
Bambo nela sem pestanejar
Brinco ela e vou

FICHA TÉCNICA

Composição: Ernani Cal e Lucas Gralato

Gravado no estúdio Podrera Records (2018)
Produção musical: Sidon Silva
Mixagem e masterização: Sidon Silva
Arranjo: Sidon Silva e Ernani Cal

Naipe de Cuícas e Coro gravados no EcoSom (2018)
Imagens: Sidon Silva, Ernani Cal e Yamê Valente
Edição: João Oliveira
Voz: Mako
Voz Tema: Lucas Gralato
Violão: Lucas Gralato
Bateria: Sidon Silva
Percussão: Sidon Silva e Ernani Cal
Cuícas: Ernani Cal e Lucas Gralato
Naipe de Cuícas: Antonio Simões, Doda Sodré, Edu Aguiar, Fabiano Magdaleno, Lia Wogel, Leandro Jordão, LERC, Mako, Neco, Rejane Rodrigues, Renight da Cuíca, Tom.
Coro: Antonio Simões, Doda Sodré, Edu Aguiar, Ernani Cal, Fabiano Magdaleno, Lia Wogel, Leandro Jordão, Lucas Gralato, LERC, Neco, Rejane Rodrigues, Renight da Cuíca, Sidon Silva, Tom, Yamê Valente.
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domingo, 31 de março de 2019

Cuiqueiros 8 - Manoel Quirino

"A fotografia que eu gostaria de ter encontrado na época da escrita do mestrado: a cuíca carioca na transição de sua forma e técnica de execução antiga (ainda como puíta) aqui apresentada por Manoel Quirino, o 'ás da cuíca' da escola de samba Lyra do Amor, de Bento Ribeiro... (Rio de Janeiro, Revista O Cruzeiro - 1935)".

As palavras acima são do historiador e etnomusicólogo Rafael Galanteautor de uma brilhante dissertação de mestrado, já comentada AQUI no blog, onde aborda a relação entre a cuíca e os tambores de fricção da África Central, como a puíta angola. 

E esta é a fotografia em questãoUma imagem que deveria ser impressa em nossos livros escolares e merecia ganhar uma versão em escultura de bronze exposta em praça pública, tamanha a sua beleza e valor histórico.

Originalmente publicada em 16 de novembro de 1935, esta foto ilustra uma reportagem da revista O Cruzeiro sobre a visita de dois bailarinos russos, Clotilde e Alexandre Sakharoff, ao terreiro da escola de samba Lyra do Amor, no bairro carioca de Bento Ribeiro, acompanhados de personalidades da alta sociedade brasileira.

Segundo a revista, os visitantes "se deliciaram ouvindo o ritmo estranho do samba de nossa terra, com suas cuícas, seus tambores monótonos, seus violões plangentes e seus cavaquinhos. Os artistas russos mostraram-se maravilhados com aquele espetáculo de arte primitiva, revelando seu invulgar interesse pelos instrumentos e pelos motivos musicais que escutaram".

Aí vemos Manoel Quirino, um completo desconhecido nos dias de hoje, assim como muitos outros cuiqueiros do passado. Apesar do seu atual anonimato, é provável que ele tenha sido um protagonista de seu tempo, pois ter seu nome citado na principal revista da época, descrevendo-o como "ás da cuíca", significa que ele devia ocupar um lugar de destaque entre os seus contemporâneos. Talvez nunca saibamos maiores detalhes de sua biografia, mas o fato é que ele certamente foi um dos primeiros cuiqueiros do samba, e devemos a pessoas como ele o prazer de, hoje, tocar nossas "choronas".

Além da enorme satisfação que nos dá simplesmente saber da sua existência, esta bela imagem de Manoel Quirino traz também a oportunidade de observar algumas características que a cuíca tinha no passado. Como o próprio Rafael Galante observa, vemos aí um instrumento "na transição de sua forma e técnica de execução antiga". Essa antiga técnica de execução já foi tema de um post AQUI no blog. E quanto às suas antigas características físicas, vale comparar esta cuíca de Manoel Quirino com o seguinte relato de Mestre Marçal a respeito das cuícas que ele via em sua infância:

"Naquela época a cuíca ainda era encourada com tachinhas. Esticava a pele e ia colocando tachinhas. E a vareta não era como a de hoje não. Furava-se a pele com alfinete quente, pregava-se uma arruela de couro por cima e por baixo da pele e amarrava o bambu com arame. Aquilo tinha pouca duração porque o próprio arame ia cortando a pele. Ou então o arame partia. Depois apareceram as cuícas como essas de hoje, que só arrebentam mesmo quando a pele arrebenta" (Depoimento prestado ao jornalista Sérgio Cabral em 1979).

Vemos nitidamente a arruela de couro mencionada por Marçal no centro da pele da cuíca de Manoel Quirino. Já o bambu preso com arame não dá pra enxergar, assim como as tachinhas, mas podemos deduzir que estas estejam ali, fixando o couro em toda a circunferência na barrica de madeira. Desta forma, o método de afinação consistia em aproximar o instrumento à uma fogueira para esticar o couro sob efeito do calor. Depois, como disse Mestre Marçal, apareceram as cuícas como essas de hoje, não mais com tachinhas, arame e arruelas. Mas quando exatamente teria ocorrido essa transição na estrutura do instrumento e também em sua técnica de execução?

Não é simples responder esta pergunta. Entretanto, comparando esta imagem de Manoel Quirino, registrada em 1935, como outra fotografia também já publicada aqui no blog, de Marcelino de Oliveira,  produzida em 1937, vemos que numa diferença de apenas dois anos, o atual mecanismo de afinação e a atual técnica de execução já estavam em uso. Mas além disso tudo, tem ainda o que é de fato importante: o sorriso no rosto de Manoel Quirino demonstra que tocar cuíca traz felicidade há muito mais tempo do que um famoso meme fez, recentemente, todo mundo acreditar.
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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Música 20 - Tem brabo no samba [Cena de Escola de Samba]

A música em destaque neste post vem do álbum Tam… Tam… Tam…!, considerado uma das produções mais preciosas da discografia brasileira, e traz uma gravação de cuíca sem dúvida das mais importantes na história do nosso estimado instrumento musical.

São diversos fatores que tornam Tam... Tam... Tam...! um disco tão precioso. Trata-se da trilha sonora do espetáculo teatral Brasiliana, de Miecio Askanasy, composto de quadros que apresentaram aspectos da história e da cultura afrobrasileira a platéias de países da América do Sul, Europa, África e Oriente Médio, entre 1950, quando o espetáculo estreou no Rio de Janeiro, e 1958, ano em que o disco foi lançado pela gravadora Polydor.

O repertório é formado em grande parte por pontos de candomblé, dentre eles Nanã Imborô, que parece ter inspirado Mas que Nada do genial Jorge Ben Jor. Mas para além deste dado curioso, são os arranjos do maestro José Prates e a execução da orquestra, com destaque para o solo vocal do cantor Ivan de Paula, que de fato traduzem a grandeza do disco. Suas faixas correspondem aos quadros daquele espetáculo teatral, como “O Navio Negreiro”, “Festa do Côco”, “Macumba”, “Funerais de Rei Nagô” e ainda “Cena de Escola de Samba”, subtítulo da faixa Tem brabo no samba, executada para a encenação de um desfile carnavalesco assim descrito na contracapa do álbum:

A escola de samba desceu o morro e já se encontra no centro da grande metrópole carioca em pleno carnaval, enquanto os passistas e cabrochas se refrescavam nos bares das proximidades. O surdo, devidamente afinado, novamente invocou os deuses do ritmo que baixaram, se incorporando nos tamborins, reco-recos, cuícas e agogôs, fazendo-os bradarem num crescente infernal! Tam... Tam... Tam...! Porta-estandarte! Mestre-sala! Cabrochas! Passistas! Bateria! Cantam agora o samba! Hino de alegria... evocação à liberdade daqueles que sofreram o cativeiro, músicas benditas por Deus que fazem o povo sorrir na sua hora mais triste. 



Desde a introdução, a música surpreende pela originalidade, revelando gradativamente a diversidade de timbres da sessão de ritmo formada pelos músicos Mateus (tarol), Waldemar (surdo), Hugo (surdo), Darcy (tamborim), Sabú (agogô), Hélio (reco-reco) e o grande Eliseu Félix (pandeiro), que mais tarde formaria o famoso trio percussivo com Luna e Mestre Marçal. Quanto à gravação da cuíca, nem precisava ter o nome Boca de Ouro na ficha técnica para identificar que foi ele o executante.

Com seu estilo inconfundível, nessa performance o Boca nos dá ainda mais elementos para considerá-lo um dos maiores cuiqueiros de todos os tempos. Esse registro evidencia que ele aplicava a cuíca como um instrumento de função essencialmente melódica, produzindo escalas, glissandos e intervalos de notas nitidamente orientadas pelo sistema tonal. Temos aí, portanto, o que justifica a enorme importância dessa gravação, pois ela nos serve como um excelente material para a reflexão em torno da função musical da cuíca, um assunto ainda pouco discutido, mas muito mais complexo do que podemos imaginar.
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quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Vídeo 22 - Estudo para cuíca sobre gravação de Pretinho da Serrinha [por Juan Carlos Marras]

Que a cuíca é um instrumento musical internacionalmente conhecido nós já sabemos. E sabemos também que grande parte desta fama internacional está diretamente ligada à sua forte presença no contexto das escolas de samba espalhadas por todo o Brasil e também em muitas outras partes do mundo. A transmissão televisiva do carnaval brasileiro ao longo das últimas décadas sem dúvida contribuiu muito para este processo e um exemplo incrível do enorme alcance que a cuíca atingiu no mundo é a Confederação de Cuiqueiros do Japão, sediada em Tóquio.

Mas além de ter sua história fortemente ligada ao carnaval, sabemos também que a cuíca tem vaga cativa em outros contextos e formas de se tocar samba, como nas rodas e pagodes de mesa, nos palcos e estúdios de gravação, assim como em instituições de ensino musical. E tal como no universo carnavalesco, a cuíca também tem os seus representantes internacionais nesses diferentes ambientes do samba. Um deles é o percussionista argentino Juan Carlos Marras, que tem realizado um trabalho belíssimo com seus alunos, dedicando-se a transcrever em partitura algumas performances emblemáticas de cuiqueiros que costumamos escutar em gravações. Neste vídeo, Marras e seu aluno Lucio Schmer reproduzem a linda execução de cuíca que o excepcional Pretinho da Serrinha gravou em Tristeza pé no chão, na interpretação da cantora Teresa Cristina com o Grupo Semente.


Já vimos aqui alguns casos de exercícios para cuíca escritos em pauta, como em Batuque é um privilégio e em Percusión Brasileña, mas nunca a transcrição inteira de uma execução do instrumento na gravação de um samba. Mais abaixo estão as partituras que resultaram deste excelente e, talvez, inédito trabalho.

É certo que muitos de nós gostamos de tocar cuíca pelo simples prazer de brincar em um bloco de carnaval, ou pela emoção de desfilar numa grande bateria, ou apenas pra tirar uma onda num pagode com os amigos no fim de semana, sem que pra isso seja necessário conhecer teoria musical. Mas ninguém há de negar o quanto este exemplo é admirável. ¡Gracias hermanos!

Estudo para cuíca - Tristeza pé no chão - Página 1

Estudo para cuíca - Tristeza pé no chão - Página 2

Estudo para cuíca - Tristeza pé no chão - Página 3