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Bem vindo ao blog Cuiqueiros, um espaço exclusivamente dedicado à cuica – instrumento musical pertencente à família dos tambores de fricção – e aos seus instrumentistas, os cuiqueiros. Sua criação e manutenção são fruto da curiosidade pessoal do músico e pesquisador Paulinho Bicolor a respeito do universo “cuiquístico” em seus mais variados aspectos. A proposta é debater sobre temas de contexto histórico, técnico e musical, e também sobre as peculiaridades deste instrumento tão característico da música brasileira e do samba, em especial. Basicamente através de textos, vídeos e músicas, pretende-se contribuir para que a cuica seja cada vez mais conhecida e admirada em todo o mundo, revelando sua graça, magia, beleza e mistério.

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segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Cuiqueiros 7 - Marcelino de Oliveira

*por Marcello Sudoh e Paulinho Bicolor

Marcelino de Oliveira, mais conhecido como Oliveira da Cuíca, nasceu provavelmente no início do século XX, nos paradouros do Estácio de Sá, bairro próximo ao centro do Rio de Janeiro. Segundo depoimentos de sambistas que o conheceram pessoalmente, como o mestre-sala Acelino dos Santos, conhecido como "Bicho Novo", Oliveira era filho de dona Marcelina, respeitada senhora que mantinha um prostíbulo muito conhecido naquela região.

Oliveira da Cuíca (Revista "O Malho" - 16/12/1937)

Logo cedo, o sambista esguio e boa pinta, da turma de bambas como Brancura, Baiaco e Bucy Moreira, se envolveu com o samba "estaciano" e com o famoso bloco "Deixa Falar", que ainda não era conhecido como escola de samba. Sua presença tocando cuíca na bateria do bloco foi descrita por importantes sambistas e antigos moradores do Estácio em uma serie de depoimentos coletados pelo jornalista Francisco Duarte. Alguns desses depoimentos estão no CD que acompanha o livro "Samba de sambar do Estácio - 1928 a 1931", onde há uma preciosa fala de Xangô da Mangueira (disponível no player abaixo) sobre o fato de Oliveira ter aprendido a fabricar cuícas seguindo os ensinamentos de João Mina. O mangueirense informa ainda que muitos grupamentos carnavalescos da época compravam as cuícas fabricadas por Oliveira.



Com o crescimento da indústria fonográfica coincidindo com o período em que o governo brasileiro firmava o conceito de "cultura brasileira", músicos e compositores de diversos matizes passaram a atuar em discos de gravadoras como a Odeon e a Victor. Era uma chance imperdível para os ritmistas dos morros, que viam ali a possibilidade de obter renda com aquilo que faziam por lazer: tocar samba. Instrumentos "rudimentares", então usados em terreiros e desfiles de rua, tiveram que ser adaptados para os estúdios de gravação. Caso contrário, aqueles músicos estariam fora de um novo mercado que remunerava os sambistas. Foi nessa época que apareceram as primeiras cuícas com afinadores e aros cromados, substituindo as antigas cuícas que tinham a pele presa com taxinhas. Eram exigências que os estúdios de gravação impunham já que era impossível acender fogueira em ambientes fechados a fim de esticar o couro dos instrumentos e obter a afinação desejada.

Oliveira certamente foi um dos pioneiros na fabricação de cuícas com essas modificações, mas não é possível saber se as características que a cuíca adquiriu em função desses novos padrões foram ideia dele. Muniz Júnior, por exemplo, afirma que quem primeiro instalou tarraxas (afinadores) na cuíca foi Samuca, da escola de samba "Paz e Amor", de Bento Ribeiro. Seja pela suposta intervenção de Samuca ou de qualquer outro personagem que ainda permanece anônimo, podemos intuir que Oliveira tenha contribuído, em alguma medida, nesse processo de modificações na estrutura da cuíca, e que o crescimento das gravações em discos deva ter lhe garantido bons rendimentos, aumentando a venda de cuícas dentro dos novos padrões, além de ele mesmo tocar em muitos desses discos. Haja vista o fato de que suas atuações em gravadoras e emissoras de rádio o deixaram conhecido como "rei da cuíca" (Boca de Ouro também seria chamado assim, alguns anos mais tarde).

Em 1931, Francisco Alves grava o samba "Meu Batalhão", de Ismael Silva e Nilton Bastos, sendo este o registro dos sons de uma cuíca mais antigo de que temos conhecimento. Nessa época, a cuíca ainda não executava as notas agudas e tinha como função marcar o tempo do samba, como o surdo faz atualmente. É bem possível que o cuiqueiro nessa gravação tenha sido o Oliveira.


Já em 1936, Aracy de Almeida grava "Mandei Carimbar", de Kid Pepe e Germano Augusto, que adaptaram no refrão um tema tradicional das antigas rodas de pernada do Rio de Janeiro. Segundo o amigo Barão do Pandeiro, que nos indicou essa bela gravação, a cuíca que nela escutamos foi gravada pelo Oliveira. É interessante notar que, diferente da gravação de "Meu Batalhão", onde o instrumento emite apenas notas graves marcando o andamento do compasso, em "Mandei Carimbar" a cuíca é aplicada com maior variedade rítmica, sendo nítida a execução de notas graves e agudas, embora a afinação ainda fosse "grave" em comparação à sonoridade que nos habituamos escutar hoje em dia.


Se, como acreditamos, Oliveira foi mesmo o cuiqueiro dessas duas gravações, podemos concluir que ele contribuiu não só para o processo de modificações na estrutura da cuíca, como fabricante do instrumento, mas também participou ativamente do processo de modificações na técnica de execução, na função da cuíca em um arranjo musical, e na evolução sonora do instrumento.

Mas a carreira artística de Oliveira da Cuíca foi além de sua enorme importância enquanto cuiqueiro. Em 1933, ele teria formado um trio vocal-instrumental para excursionar pelo país com dois outros sambistas que também carregavam o seu sobrenome: Wilson Baptista (de Oliveira) e Agenor de Oliveira, o Cartola. Lamentavelmente – reproduzindo as palavras de Rodrigo Alzuguir , "poucos tiveram a sorte de assistir a esse encontro inusitado. A turnê brasileira do conjunto se resumiu a sacolejar por algumas horas num trem da Estrada de Ferro Central do Brasil, indo e voltando pela Linha do Centro até a cidade fluminense de Barra do Piraí - onde Oliveira, Wilson e Cartola se apresentaram sem deixar lembranças. E o trio se desfez". Entretanto, em outras oportunidades, Oliveira pôde se apresentar inclusive fora do país. A "Embaixada Brasileira", grupo criado por Heitor dos Prazeres, tinha entre seus membros Paulo da Portela, Oliveira da Cuíca e a cantora Marília Batista. O grupo foi convidado a se apresentar no Uruguai, em dezembro de 1937. Antes da viagem, a "Embaixada" ocupou os microfones da Rádio Nacional a fim de apresentar o que mostrariam em Montevideo.

O fato de Oliveira ter trabalhado ao lado de compositores tão importantes leva a suspeitar que ele possa ter sido também compositor, e tudo indica que "Samba Raiado", gravado em 1931 por Ismael Silva, seja uma música dele. Fontes atribuem a autoria desse samba a Marcelino de Oliveira, o que nos leva acreditar, portanto, que seja uma composição do nosso cuiqueiro. "Samba Raiado" é um belo exemplo da transformação que o gênero samba sofreu durante sua migração do maxixe para o samba que conhecemos. O tema é ainda hoje muito usado em rodas de partido-alto, sendo Aniceto do Império o seu principal divulgador e, mais recentemente, chegando às novas gerações através do grupo Revelação.



Oliveira da Cuíca faleceu precocemente, em maio de 1938, conforme publicado em nota pelo jornal "A Noite". Segundo Mestre Marçal, em depoimento ao jornalista Sérgio Cabral, "o enterro dele saiu ali do baixo meretrício, passou por dentro, correu aquilo tudo", afirmando ainda que Oliveira foi o primeiro cuiqueiro que ele conheceu. Esta simples afirmação de uma das nossas maiores referências, como o é Mestre Marçal, nos dá a dimensão da enorme importância de Oliveira, não só para a história da cuíca, mas para toda a história do samba.


FONTES:
  • Pioneiros do samba: Bicho Novo, Carlos Cachaça e Ismael Silva - livro de Arthur de Oliveira Filho publicado em 2002 pelo Museu da Imagem e do Som.
  • Vida e morte do Deixa Falar, o bloco que deixou escola - reportagem de Francisco Duarte publicada em 13 de fevereiro de 1979 no Jornal do Brasil.
  • Samba de sambar do Estácio: 1928 a 1931 - livro de Humberto M. Franceschi publicado em 2010 pelo Instituto Moreira Salles.
  • Do batuque à escola de samba: subsídios para a história do samba - livro de J. Muniz Júnior publicado em 1976 pela editora Símbolo. 
  • Wilson Baptista: o samba foi sua glória - livro de Rodrigo Alzuguir publicado em 2013 pela editora Casa da Palavra.
  • A morte do "rei da cuíca" - nota publicada em 23 de maio de 1938 no jornal A Noite.
  • As escolas de samba do Rio de Janeiro - livro de Sérgio Cabral publicado em 1996 pela editora Lumiar.
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