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Bem vindo ao blog Cuiqueiros, um espaço exclusivamente dedicado à cuica – instrumento musical pertencente à família dos tambores de fricção – e aos seus instrumentistas, os cuiqueiros. Sua criação e manutenção são fruto da curiosidade pessoal do músico e pesquisador Paulinho Bicolor a respeito do universo “cuiquístico” em seus mais variados aspectos. A proposta é debater sobre temas de contexto histórico, técnico e musical, e também sobre as peculiaridades deste instrumento tão característico da música brasileira e do samba, em especial. Basicamente através de textos, vídeos e músicas, pretende-se contribuir para que a cuica seja cada vez mais conhecida e admirada em todo o mundo, revelando sua graça, magia, beleza e mistério.

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domingo, 22 de novembro de 2020

Dez anos sem Ovídio Brito

O dia de hoje marca exatamente dez anos que perdemos nosso mestre Ovídio Brito. Discípulo de cuiqueiros célebres como Germano, da Mocidade Independente, e Mestre Marçal, certamente sua maior referência, Ovídio se notabilizou como um dos principais cuiqueiros da história e um dos maiores sambistas do seu tempo.


Mas o que faz um cuiqueiro entrar para a história? E o que mede a grandeza de um sambista? No caso de Ovídio, as respostas parecem estar no diálogo abaixo, entre Marcelinho Moreira e Jorge Quininho. É interessante notar como eles se referem a Ovídio e à cuíca como entidades que se confundem num corpo só. Quininho é explícito ao dizer que Ovídio tinha de fato a cuíca como parte do seu corpo e Marcelinho sugere que as palavras "cuíca" e "Ovídio" são como sinônimos para ele.


A reverência a Ovídio demonstrada nessa conversa representa o pensamento que todos que o conheceram de perto compartilham com unanimidade: que Ovídio foi um gênio por sua sensibilidade musical, e um anjo pela passagem inspiradora na terra. E como se vê, este pensamento vem sendo transmitido para as futuras gerações, aí representadas por João Moreira, filho de Marcelinho, e Pedrinho da Serrinha, filho de Quininho, garantindo que Ovídio será sempre lembrado como um membro da fina flor do samba.

Mas nenhuma reverência seria capaz de expressar a relação entre Ovídio, sua cuíca e o samba com tanta profundidade quanto o testemunho pós morte que o próprio Ovídio enviou, pouco tempo depois de sua partida, numa carta psicografada dirigida à sua grande amiga Bianca Calcagni, confiando a ela, no exercício de sua fé, a mensagem abaixo (que Bianca lê e comenta no vídeo em seguida):

Bianca, obrigado. Obrigado por me permitir escrever. Obrigado por lembrar-se de mim. Obrigado por tudo. Esta mensagem eu dedico à vocês e aos meus amigos, aos meus familiares, essa “pequena senzala livre”, a todos os músicos e intérpretes que sabem ganhar o mundo com seu talento, à minha cuíca, meu instrumento que já fazia parte do meu corpo.
 
Meus amores, o sono me venceu e o cansaço me dominou, o acidente automobilístico me trouxe à uma nova roda de samba, o choro estridente de minha cuíca soa pelos céus. Sou um músico feliz por ter podido tocar minha verdade e mostrar minha arte para o mundo. O samba é capaz de sintetizar os fatos vividos por pessoas comuns, nosso povo, nossa alma guerreira. Fui negro, sou negro e a negritude se manifesta nas culturas diversas do meu Brasil. Uma grande mistura de crenças e raças, uma babel cultural, uma pajelança de ritmos. Manifesto neste texto o que sinto, o que conquistei, o que vivi. 

Toco minha alma no acorde da vida e acordo vivo. O céu nunca mais foi o mesmo desde a minha chegada, por fim ponho pra quebrar e coloco anjos pra requebrar. Sambo miudinho, sambo juntinho, partido alto ou gafieira, samba sincopado ou samba enredo. Passei pela vida como um passista passa pela avenida, com muita alegria.

Quando sentirem saudades de mim agucem os ouvidos e ouçam meu ritmo sendo tocado no vento. Vou caminhar pelo palco da verdadeira vida e como companheira inseparável minha cuíca. Um samba vou fazer, um samba vou tocar, um samba vou sambar, um samba vou viver. 

À todos aqueles que sabem viver e aprender com a vida. À todos aqueles que fazem o que amam e amam a vida.

Meu obrigado.

Ovídio.



Diante disso, não há muito o que acrescentar. Só nos resta expressar nosso mais profundo agradecimento à Bianca por dividir conosco um documento tão íntimo e precioso, assim como à família do Ovídio pela autorização de publicá-lo. Independente de crença ou descrença individual, certamente todos que o admiram se alegram em saber que Ovídio seguiu com sua inseparável cuíca e com o toque de prima do seu samba; e que permanecerá aqui como "flor-luz que influi nas gerações", conforme ele mesmo canta em Eterna Paz.

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